terça-feira, 1 de dezembro de 2009

VOCÊ CONHECE A PF POR DENTRO ?

 Abusos
PAD Temerário
A sociedade brasileira vem se acostumando à idéia de viver em um país democrático. Como o aprendizado infantil, o aprendizado democrático nem sempre segue uma constante ascendência, demonstrando por vezes sinais claros de regressão. Estamos na normalidade do processo de amadurecimento e começamos a ver nitidamente, numa fase de autocrítica necessária, que as instituições que formam o Estado Brasileiro "não foram sequer tocadas pelo processo de democratização" 1.

É assim com o Departamento de Polícia Federal. Embora nos últimos anos o resultado dos trabalhos do órgão tenha contribuído para o norte a ser trilhado por nós, no caminho para uma sociedade justa e fraterna2, por inúmeras vezes, esta mesma instituição tem cometido erros imperdoáveis, aproximando-se de polícias autoritárias e nos fazendo lembrar de regimes e épocas sombrias.


A análise da gênese de algumas ações institucionais de desrespeito a direitos constitucionais garantistas, que a despeito do fortalecimento de algumas instituições de viés democrático (Ministério Público, imprensa, Defensorias Públicas, Judiciário, Ouvidorias das Polícias) têm nos últimos anos se concretizado sem grandes obstáculos, e.g. Operação Satiagraha, deve ser feita olhando-se inicialmente para o interior da própria entidade policial.


Nesta análise que antecede as ações policiais que chegam através da mídia ao conhecimento do grande público, é preciso ver como agem os atores e detentores do poder no Departamento de Polícia Federal, para percebermos que motor de abusos externos é cotidianamente sedimentado na rotina institucional interna.


Como atuam os protagonistas do poder dentro da Polícia Federal?


O dia-a-dia da instituição, rotina de exercício do império dos delegados de Polícia Federal, é marcado pelo desestímulo profissional e resignação dos outros agentes de segurança pública (escrivães, agentes, papiloscopistas e peritos criminais federais, ou simplesmente "não-delegados") e servidores administrativos. A maioria é guiada com norte muitas vezes distante da prestação eficiente da segurança pública, sem possibilidades estruturais de mudança.


A finalidade pública deve nortear toda manifestação estatal, é certo, que não pode ser entregue à defesa simples de uma casta, exercício simplório de força ou ao corporativismo gratuito de alguns.


Os delegados assim têm feito e mantido o poder na corporação através de alguns mecanismos eficientes:


1) aposta e incentivo no modelo arcaico do inquérito policial e da divisão segregacionista da carreira policial3;


2) freqüente distribuição, sem critério justo e racional, entre seus pares (e colegas passivos e/ou coniventes) de pequenos "prêmios profissionais": concorridos cursos de capacitação no estrangeiro, viagens para localidades privilegiadas para missões desejadas, lotações estratégicas na estrutura do órgão, remoções ex officio com concessões de ajuda de custo etc;


3) ausência de normatização interna dos direitos e prerrogativas funcionais, em complementação à legislação vigente, com redução conseqüente da amplitude de direitos no cenário interno, deixando a concessão de prerrogativas do servidor ao alvedrio, humores e favores das chefias; e


4) ameaça (implícita) de instauração temerária de processo administrativo disciplinar em desfavor do servidor insurgente.
Interessa neste texto abordar justamente a arbitrariedade da instauração do processo administrativo disciplinar (PAD) temerário, como forma canhestra de punição do servidor.


Ora, o direito ao processo administrativo prévio à punição disciplinar, previsto nos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal4, é GARANTIA CONSTITUCIONAL, inscrita no Título II da Carta Magna, "Dos Direitos e Garantias Fundamentais".


Com efeito, não pode essa garantia constitucional de existência prévia do PAD à punição do servidor ser transformada, numa leitura maquiavélica, na própria punição antecipada.  O processo disciplinar é meio para se atingir o interesse público e não fim em si mesmo.


Em abordagem sobre "O tempo e as penas processuais (penais)", Aury Lopes Júnior5 faz reflexões que se aplicam perfeitamente ao processo administrativo disciplinar temerário, lembrando-nos que "o caráter punitivo (do processo) está calcado no tempo de submissão ao constrangimento estatal(...)".


Assim, temos que o processo (administrativo disciplinar) em si mesmo pode se tornar uma pena, a partir do instante em que não se assenta em justa causa. Esta verdade se avulta para o servidor de bem, impelido a uma dialética estatal que, em última análise, coloca em xeque sua honestidade e retidão.


Conhecida no direito penal como "La pena de banquillo, expressão consagrada no sistema espanhol, para designar a pena processual que encerra o sentar-se no banco dos réus.", também se aplica no âmbito administrativo, quando o processo administrativo disciplinar perde o status de garantia para, manipulado, ser a própria forma de punição.


A simples instauração do PAD inaugura uma série de efeitos deletérios sobre a vida profissional do processado. Um desses efeitos é possibilidade efetiva de afastamento das funções policiais pelo período em que durar o processo administrativo, nos termos do art. 51 da Lei 4.878/65 e art. 147 da Lei 8.112/90. Neste caso, o receio e a intranqüilidade quanto à possibilidade do afastamento, e conseqüente entrega da arma e da carteira funcional, nascem com a abertura do processo administrativo e percorrem todo o seu trâmite, como a Espada de Dâmocles6 sobre a cabeça do policial.
Outra conseqüência é a limitação pela administração de alguns direitos do processado, em decorrência do processo administrativo, tais como a impossibilidade de remoção enquanto perdurar o processo, prevista no art. 33 da Instrução Normativa 04/2009-DG/DPF.


O rol de gravames continua: impossibilidade de participar de missão que implique em afastamento da sede de sua lotação por mais de 24 horas (Item 74 da IN 04/91); registro negativo nos assentamentos funcionais do servidor; temor da quebra da contagem de tempo para a progressão funcional na carreira (art. 3º, inciso II e parágrafo 6º, do Dec. 2.565/98 c/c art. 9º, inciso II, da Portaria Interministerial n º 23, de 13/07/98), dentre outros.


Acrescente-se, sobretudo, o evidente dano à imagem e honra (subjetiva e objetiva), quando da instauração do PAD temerário, maculada pela publicação em boletim de serviço, do início do processo7, com ampla divulgação entre os profissionais da área, além da rotineira exposição midiática.


Um ato administrativo de tão graves efeitos não pode ser precipitado ou movido por propósitos diversos da finalidade pública. Deve ser, pois, precedido de uma sindicância investigativa isenta e transparente, a apontar os indícios consistentes de infração disciplinar, ou, se ausente a sindicância investigativa, precedido de avaliação consistente da existência de justa causa.


Neste sentido, vale citar a decisão do Tribunal Regional Federal de 1ª Região, na Apelação em Mandado de Segurança nº 1999.39.00.008857-3/PA, de relatoria do desembargador federal Antônio Sávio de Oliveira Chaves: "(...) A instauração de processo administrativo pressupõe a existência de justa causa, consubstanciada ao menos em indício de que tenha o servidor cometido irregularidades no exercício de suas atribuições (...)"


Na mesma linha, a decisão do juiz federal Carlos Augusto Pires Brandão, nos autos do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 1999.01.00.042346-7/RR: (...) A instauração de processo administrativo para satisfação de interesses alheios à Administração Pública constitui desvio de finalidade e justifica a intervenção judicial para recomposição da finalidade e moralidades públicas. (...)


Não pode o administrador se furtar à análise da justa causa para instauração do procedimento disciplinar, com o desejo único e indisfarçável de perseguir o policial ou de puni-lo por não compactuar com caprichos.


O processo administrativo não é forma de impedir a desconcentração de poder, a democratização da corporação ou de impor castigo aos descontentes, e sim de legitimar a punição justa por descumprimento de dever funcional.  Leyla Viga Yurtsever lembra que "no processo administrativo, comparece, de um lado, a Administração, não como Poder, que corresponde ao Estado, mas como gestora do interesse público" 8.


Nas claras e contundentes palavras de José Armando da Costa: "(...) O aspecto mais democrático e importante do devido processo legal é a exigência desse imprescindível requisito de iniciação processual (fumus boni iuris), sem o qual ficaria o servidor público à mercê das trepidações emocionais dos seus superiores hierárquicos, os quais poderiam, assim, infelicitar, importunar e desassossegar os seus subalternos como bem lhe aprouvesse, já que não estariam vinculados a esse pressuposto legal" 9.


No entanto, infortunadamente, tem sido assim no DPF. Para usar a feliz expressão cunhada por Luiz Eduardo Soares, persiste no âmbito do Departamento de Polícia Federal um "perverso relicário de iniqüidades" 10.


Foi assim com o Escrivão de Polícia Federal Diógenes Parente Pacheco Filho, punido com pena de repreensão pela Corregedoria da Polícia Federal, por não ter ido abrir o cartório da Delegacia de Campina Grande/PB, para que o delegado Alexandre Henrique Lobo de Paiva pegasse a arma que havia esquecido.


Também foi assim com a instauração de PAD para apurar a responsabilidade funcional de um agente de Polícia Federal, lotado na Delegacia de Joinville/SC, que se "atreveu" a fazer críticas ao inquérito policial, em entrevista a programa de TV.


Na mesma trilha, o Escrivão de Polícia Federal Alexandre Rios Gurgel Nogueira foi alvo de PAD, instaurado para apurar sua responsabilidade funcional por ter, através de advogada legalmente constituída, pleiteado à justiça direito que a ele assistia, contrariando a vontade da chefia da Delegacia de Santarém e da Superintendência do Pará 11.


Contra os desmandos e despotismos de atávicos poderosos, os colegas têm se amparado com êxito no Poder Judiciário: nos três casos citados, escolhidos entre outros tantos, que infelizmente desenham a feição interna da Polícia Federal, a Justiça tem socorrido com o arquivamento dos procedimentos disciplinares e anulação das punições indevidas.


A advogada Carolina Almeida Sidônio é precisa ao pontuar que "infelizmente alguns poucos servidores do DPF ainda carregam consigo um legado da época da ditadura, tentando impor penalidades em total desconformidade com os princípios instituídos pela CF/88, compelindo os injustiçados a reiteradamente recorrerem à Justiça para salvaguardar seus direitos. De forma arbitrária, incompleta e insubsistente, sem substrato de legalidade, vão cometendo abusos pautados no excesso/abuso de poder." 12


Nestes casos, e porque - como já dito - estamos evoluindo para a democracia, transparece o direito ao servidor perseguido ou injustiçado do pleito judicial ao dano moral em caso de PAD temerário.


Embora tenhamos a salvaguarda do Poder Judiciário constitucionalizando as ações abusivas, outra questão interessante surge do abuso iniciado com o PAD temerário: afinal, quem paga a conta?


Ora, injustiçado o servidor, com título judicial contra a União, somos todos nós (contribuintes) que ao final pagamos a conta dos desmandos. São os cofres públicos que arcam com as indenizações por danos morais causados pelos delegados arbitrários, bem como com os gastos decorrentes da movimentação indevida da máquina pública.


Por falar em abuso, difícil é não ver na conduta da autoridade arbitrária, que instaura o procedimento administrativo leviano, a subsunção típica ao art. 4º da Lei 4.898/65:


"Art. 4º. Constitui também abuso de autoridade:

 h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;"

Segundo a doutrina, o abuso de autoridade pressupõe três requisitos: ilicitude do ato, prática por funcionário público e falta da motivação que o legitime. Esses três pressupostos estão presentes na instauração temerária do processo administrativo disciplinar.


O ato abusivo e injusto, por se distanciar da finalidade pública com a utilização do próprio aparato estatal, chancela-se logicamente como imoral. Por imoral, há flagrante atentado a um dos princípios constitucionais da administração pública, justamente a moralidade administrativa (art. 37, caput, CF).


Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citada por Eurico Bitencourt Neto, "a imoralidade exsurgirá do conteúdo do ato, quando este conteúdo contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio e justiça, entre outros valores." 12


De tão nefasto ato arbitrário, conclui-se que não basta a correção do ato pelo Judiciário, sendo corolário do combate à proliferação dos abusos a representação administrativa contra a autoridade insensata, para sanções cabíveis. Bem como para que repare à Administração os prejuízos advindos de seu ato ilegal,  nos exatos termos dos art. 121 e 122 da Lei 8.112/90:

                                                             
"Art. 121 O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.
Art. 122 A responsabilidade civil decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiros.
§ 2º Tratando -se de dano causado a terceiros, responderá o servidor perante a Fazenda Pública, em ação regressiva."

                                  


Neste ponto, cabe aos sindicatos prestar assessoria jurídica aos seus filiados, em busca da anulação do ato, promoção da responsabilidade administrativa da autoridade arbitrária e indenização por danos morais ao injustiçado. Também cabe à Advocacia Geral da União a competente ação regressiva.


No mais, em tempos de resistência à democratização em nossa instituição, é válido citar Jorge Mautner, numa estrofe aqui dedicada àqueles que acreditam serem eles próprios o motivo último do órgão:

                       
" Urge dracon
   Ave Caesar
   Magnificus, supremus, augustus
  Divinus, superbus, vitalicius
  Professor, dictator, imperator"14.

                                  
  
*Johnny Wilson Batista Guimarães, Escrivão de Polícia Federal, é Delegado Sindical do SINPEF MG em Varginha, bacharel em Direito pela UFMG e pós-graduando em Ciências Penais pelo Instituto Luiz Flávio Gomes.
  
Fonte: Agência Fenapef –http://www.fenapef.org.br/



--
SINPEFPB - Rua Lourenzo Fernandes nº 52 - Torre - João Pessoa-PB | Fones: (83) 3221.3310 - 3221.0462 - Fax (83) 3221.3310