20.08.2009
“O inquérito policial é matriz de corrupção”
Seria cômica não fosse preocupante a notícia sobre a instauração de processo administrativo disciplinar para apurar a responsabilidade funcional de um agente de Polícia Federal, lotado na Delegacia de Joinville/SC, que se “atreveu” a fazer críticas ao inquérito policial, em entrevista a programa de TV, no final do ano passado. Dentre os “delitos de opinião” que devem ter ferido os brios de alguma zelosa autoridade da PF, foram citadas as seguintes afirmações, que configuraram as supostas transgressões cometidas pelo agente: “o inquérito policial é matriz de corrupção” e “quem faz toda a investigação é o agente e que o delegado, muitas vezes, não participa da investigação e faz apenas um ‘control C, control V’”.
“De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, apresentada no início de agosto, o delegado estaria exigindo vantagens indevidas de empresários para interromper investigações.”
Nem precisa ter formação jurídica para saber que o inquérito policial, símbolo da impunidade e da falência do modelo de investigação criminal no Brasil, além de ineficiente, burocrático e jurássico, facilita o tráfico de influência e a corrupção, práticas que contaminam a nossas instituições policiais, inclusive a PF. Para citar apenas um fato recente, menos de um mês após a instauração do procedimento disciplinar contra o agente em Joinville, um delegado federal de Belo Horizonte foi preso pela própria PF, em junho, sob suspeita de corrupção e concussão, dentre outros crimes.De acordo com a denúncia do Ministério Público Federal, apresentada no início de agosto, o delegado estaria exigindo vantagens indevidas de empresários para interromper investigações. Noutros casos, as investigações nem existiam: o delegado teria ameaçado as vítimas de instaurar inquéritos se elas não lhe dessem dinheiro.
Não dá para generalizar, nem botar na conta do inquérito ou restringir apenas aos delegados a responsabilidade pelos crimes de extorsão, corrupção, concussão e outros desvios de conduta que ainda maculam a atividade policial. Assim como também não é possível ignorar que as prerrogativas (por vezes pautadas por motivações e interesses pessoais) para instaurar ou não o inquérito, indiciar ou não uma pessoa investigada e juntar ou descartar provas acabam se tornando um prato cheio para delegados inescrupulosos.
Descartar a hipótese de que o inquérito policial seja um instrumento de corrupção é tão absurdo e autoritário quanto punir quem coloca o dedo nessa ferida. Faz lembrar o clássico conto infantil sobre a roupa nova do rei, que foi enganado e pomposamente desfilou nu pelas ruas, se achando em trajes finíssimos, sem que alguém tivesse a coragem de alertá-lo. Foi uma criança que ousou verbalizar o óbvio, para espanto dos súditos e bajuladores de sua majestade.
Nem vem ao caso discutir as opções semânticas de apontar o inquérito como causa matriz, derivada ou determinante da corrupção, para usar termos afetos à matemática e à álgebra. Seria mais democrático e salutar que os delegados entrassem neste debate, do qual parecem querer fugir como o diabo foge da cruz. Certamente, a TV e outros meios de comunicação, assim como outros fóruns classistas, acadêmicos e da sociedade civil teriam espaço para todos os interessados.
A falta de disposição ou interesse dos delegados por essa discussão ficou evidente durante o seminário temático “A investigação brasileira através do inquérito policial”, realizado em Brasília, para subsidiar 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, em que foram apresentados os resultados preliminares de um estudo inédito sobre a investigação criminal no País, encomendado pela Federação Nacional dos Policiais Federais e realizado por pesquisadores de cinco universidades brasileiras.
Quanto ao uso dos comandos “control C, control V” (ou “copiar e colar”, esse recurso mais popular da informática) na elaboração do inquérito policial, deve-se fazer justiça ao delegado. O resultado de qualquer investigação policial, em regra, é fruto do trabalho de equipe. Ao contrário do que transparece na maioria das reportagens sobre as grandes (e também das menos midiáticas) operações policiais, quando geralmente um delegado – seduzido pelos holofotes – assume a paternidade e personaliza todos os feitos: ele investigou, prendeu, fez e aconteceu. Durante a instrução do inquérito policial, de fato, muitas vezes, o delegado não tem condições de fazer diligências, conhecer o local do crime, identificar suspeitos e testemunhas ou de recolher provas de autoria e materialidade. Nem sempre elabora e, com freqüência, só assina pedidos de diligências e representações à Justiça, elaborados pela equipe de policiais. Na maioria das vezes, isso não ocorre por incompetência ou indolência, mas por sobrecarga de trabalho ou mera distração.
“Não raro, há situações que um simples relatório de investigação já seria suficiente para apresentação da denúncia pelo Ministério Público e início da ação penal..”
Não raro, por vaidade, inexperiência ou prepotência, o presidente do inquérito faz pedidos desconexos, inexeqüíveis ou absurdos. Parece anedota, mas um delegado da PF chegou a exigir que o núcleo de operações fizesse diligências “in loco”, para identificar o autor de uma ligação de 15 segundos, feita seis meses antes do fato investigado, mesmo sabendo que o telefonema fora feito de um telefone público, instalado numa praça. No levantamento de informações, na coleta e análise de dados, monitoramento e acompanhamento de investigados e nas prisões em flagrante, geralmente, a participação do delegado é mínima. No atual modelo de investigação criminal, quase sempre, o delegado nem tem condições de fazer diferente, quase sempre atolado em pilhas de papéis e ocupado com as intermináveis pautas de oitivas, muitas delas dispensáveis e repetidas na fase processual. Sem demérito às suas obrigações. Mais que natural, portanto, que os inquéritos policiais sejam montados com cópias de documentos, laudos, relatórios de inteligência, informações colhidas, juntadas ou produzidas por peritos, papiloscopistas, agentes, escrivães e também por profissionais de outros órgãos públicos e privados.
O que se discute, em nome da eficiência e celeridade, é que o formato de investigação centralizado na figura do delegado acaba emperrando as investigações, às vezes por anos a fio. Não raro, há situações que um simples relatório de investigação já seria suficiente para apresentação da denúncia pelo Ministério Público e início da ação penal.
Nada mais razoável e racional que, em vez de tentar descobrir o “sexo dos anjos” no inquérito policial, o delegado copie e cole o que constar de bem feito e mais relevante, em termos de provas e indícios de autoria e materialidade, que de resto é o que interessar à instrução criminal.
“instauração de procedimento disciplinar por este motivo, além de remeter aos tempos da censura do período autoritário, só reforça a tese de que muita gente ainda se acha senhor e dono da investigação.”
O comentário sobre o uso do “control C, control V” não deveria soar como ofensa ou menosprezo ao trabalho dos delegados. Nem como provocação ou mote para disputa de poder entre integrantes de um mesmo time. Deveria ser tomada só como uma constatação ou um convite à reflexão sobre a necessidade de tornar mais eficiente a polícia judiciária. À parte as desavenças e picuinhas de ordem pessoal, a instauração de procedimento disciplinar por este motivo, além de remeter aos tempos da censura do período autoritário, só reforça a tese de que muita gente ainda se acha senhor e dono da investigação. O que é muito mais escandaloso e comprometedor para a função policial que as críticas feitas ao inquérito.
fonte: Assessoria de Comunicação Social do Ministério Público Federal em Minas Gerais
Publicado em 04/08/2009
Josias Fernandes Alves é Agente de Polícia Federal, formado em Jornalismo e Direito,
Diretor do Sinpef/MG e da Fenapef.