Será realizada nesta (27 a 30 de Agosto) semana a Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), depois de um ano de debates.
A iniciativa do Ministério da Justiça, a despeito de seus limites -naturais em uma experiência pioneira-, é um marco histórico, ao importar para o campo da segurança uma dinâmica participativa bem-sucedida nas áreas da saúde, assistência e educação, graças à qual os serviços oferecidos nesses setores passaram a ser definidos como direitos universais.
Falta estender essa compreensão para a segurança, apesar de a letra constitucional já afirmar essa perspectiva. Sem a dimensão universal, as posições se chocam, mesmo quando são complementares.
Ou seja, o conflito político se perpetua, ainda que haja bases razoáveis para um consenso mínimo, apto a sustentar uma política de Estado, supragovernamental, não partidária, com amplo apoio da sociedade.
Movimentos de direitos humanos, com razão, denunciam a brutalidade policial e chamam a atenção para os crimes do Estado e o processo perverso de criminalização da pobreza.
Por outro lado, justificadamente, autoridades e amplos segmentos sociais denunciam a violência difusa que produz a cada ano dezenas de milhares de mortos, entre os quais se contam também muitos policiais.
Para que todas essas vozes se escutem e para que seja possível avançar na construção de políticas de segurança efetivas, será preciso romper com as perspectivas parciais e/ou ideológicas, incorporando a segurança como bem e direito universal: ou seja, como um direito de todo e qualquer cidadão, de qualquer classe social, more ele em uma favela ou em um condomínio, seja branco ou negro, esteja preso ou solto.
Entretanto, de nada adianta ter bons princípios e boas diretrizes se as instituições não estiverem estruturadas de modo compatível com a realização deles. Segurança não se reduz à polícia.
Envolve diagnósticos precisos, prevenção, políticas intersetoriais, monitoramento e avaliação de resultados, entre outros desafios notavelmente menosprezados no Brasil.
O reconhecimento dessa complexidade, contudo, não pode continuar servindo de pretexto para postergar a transformação de nosso modelo policial. Por isso, outro grande desafio da Conseg será a busca de um novo modelo de polícia para o Brasil.
O modelo que temos -sem paralelo no mundo- é um Frankenstein, que começa pela existência nos Estados não de duas polícias, mas de duas metades de polícia (cada uma delas com metade do ciclo de policiamento -ou ostensividade, ou investigação).
Por isso, nossas "polícias pela metade" buscam se equilibrar, uma assumindo prerrogativas da outra. Vivem intensa rivalidade, boicotam-se mutuamente e se depreciam.
Além disso, internamente também há profundas divisões. Nas polícias militares, oficiais e não oficiais constituem mundos à parte, assim como ocorre, nas polícias civis, com delegados e não delegados -e isso até no plano salarial.
Baixos salários levam ao segundo emprego na segurança privada, o que gera conflito de interesses, esgota os policiais fisicamente e impede a racionalização dos turnos de trabalho -nenhum governo ousa inviabilizar os bicos, porque são eles que viabilizam orçamentos insuficientes, evitando a explosão da demanda salarial.
Eis o "gato orçamentário", à sombra do qual prospera a corrupção e se agenciam perversões mais graves, como as milícias, no Rio de Janeiro. É preciso que nossas polícias tenham um ciclo completo. Contudo, uma simples unificação geraria um problema maior ainda: correríamos o risco de perder as virtudes de cada instituição e de somar seus defeitos.
Há alternativas, entretanto. Uma delas vem sendo defendida com coragem pelo secretário nacional, Ricardo Balestreri: as duas polícias estaduais passariam a ter competências diferentes, segundo tipos penais.
As polícias militares poderiam tratar dos crimes patrimoniais, agindo na prevenção e na investigação, reservando-se às polícias civis os demais delitos, como os crimes contra a vida e o tráfico de armas e drogas.
Em cada polícia deveríamos ter -como em todas as polícias do mundo civilizado- apenas uma porta de entrada para assegurar aos profissionais uma carreira digna. Sobretudo, ter-se-ia de oferecer bons salários para recrutar os mais qualificados e abolir os bicos.
Tudo isso teria de vir associado às mudanças previstas no projeto Sistema Único de Segurança Pública, que visa reordenar desde a formação até o controle externo.
Eis aí uma agenda para a Conseg: segurança como direito universal e um novo modelo policial.
LUIZ EDUARDO SOARES , professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da Universidade Estácio de Sá, é assessor da Prefeitura de Nova Iguaçu (RJ). Foi secretário nacional de Segurança Pública (2003).
MARCOS ROLIM , professor da Cátedra de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista (IPA), é consultor em segurança pública. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Fonte: Folha de S. Paulo
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